quarta-feira, 24 de novembro de 2010

POEMAS BRASILEIROS


Poemas Brasileiros de Wanderson Lopez

Por José Eduardo Costa Silva


A música de Poemas Brasileiros é a parte permanente de um dizer livre; por isso, ela é essência de poesia. É uma música livre, que dilui as fronteiras conceituais entre compositor e intérprete, erudito e popular e, sobretudo, entre o conceito de obra e livre expressão da musicalidade e do estilo de um grande músico. Nas treze faixas do CD, Wanderson Lopez intercala curtas e incisivas exposições temáticas a seções de inspirado improviso, como se cada uma delas participasse de um imprevisível rondó.

A música de Poemas Brasileiros fala a linguagem de um modalismo que foi liberado pela liberação máxima do uso da dissonância...E assim ela se constitui como um poema de timbres, dinâmica, agógica e afetos. Da profusão de intervalos de segundas menor provém o áspero; a paisagem de um sentimento agreste, que se insinua a partir de cada plissar seguro nas cordas de um violão de oito cordas e de um bandolim. E esses sons dialogam com outros de natureza mais lírica e melancólica, como são os sons da harmônica de Gabriel Rossi e dos acordeons de Pedro de Alcântara e Fabiano Araújo.

Em Poemas Brasileiros há algo de profundo no aparente do ingênuo; o desfile informal de um cuidado técnico, de um cuidado com a informação, que faz parecer que procedimentos de imitação contrapontística sejam tão triviais como o canto livre de um coletivo de pássaros.

Em Poemas Brasileiros os sons percutidos de Edu Szajnbrum (percussão) e Diego Frasson (Bateria) fazem mais do que sustentar padrões rítmicos...Eles incorporam sons poucos usuais ao espectro sonoro da música. Algo tão brasileiro, quanto contemporâneo. A propósito, são raros os CDs que trazem os nomes dos instrumentos de percussão. Como se o som desses instrumentos fossem um só. No encarte de Poemas Brasileiros todos os instrumentos de percussão são discriminados. Esse fato apenas atesta o cuidado com que o CD foi produzido, vale dizer para a música que nele está registrada com o auxílio técnico de Felipe Gama e André Dias, assim como para a riqueza e beleza do encarte, que contém ilustração do próprio Wanderson Lopez e fotos de Thaiz Forzza, André Dias e Ricardo Monteiro.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Crítica de Carlos A. Hang a Variações Freudianas 1


VARIAÇÕES FREUDIANAS 1: O SINTOMA

Análise crítica
por

Carlos Alberto HANG

Se a consolidação da arte teatral se deu na Grécia Antiga como forma de homenagear ao deus do vinho, Dionisio, que é o equivalente ao deus romano Baco, não poderia ter sido em local diferente o lançamento internacional da peça Variações Freudianas 1: O Sintoma, em Roma. E se temos uma cidade que é palco do maior festival de dança do mundo, uma das artes mais expressivas do corpo e da alma humana e ainda se temos um espaço de espetáculos que é batizado com o nome de um dos artistas mais consagrados internacionalmente pela sua expressividade contemporânea, a maior cidade de Santa Catarina, Joinville, e seu tradicional Teatro Juarez Machado, certeiramente foi escolhido como palco do lançamento nacional desta peça teatral, a qual vai além do campo dinâmico das artes cênicas, tocando e sendo tocado pela psique humana em sua forma constitutiva. Lançada internacionalmente e nacionalmente, Variações Freudianas 1: O Sintoma precisa ser assistida e incorporada pelo público, o qual deixa seu papel primário de mero espectador, para ser 1 com o espetáculo.


O sintoma, feito a Esfinge, amaldiçoa a criatura que se o faz detentor, decifrando-a ou devorando-a pouco a pouco nas margens periféricas e sombrias da mente humana. O Sintoma, impulsionado pelo recalcado e pelos elementos expurgados pelo dito das conveniências normativas do ser enquanto ser carente de si mesmo, representa o retorno do real, onde o não-dito se encontra vociferando com a força de um colossal. Freud localiza no sintoma a ação entre as representações recalcadas do desejo inconsciente e as exigências defensivas, a realização de uma fantasia de conteúdo sexual originárias das pulsões, sejam elas perversas, normais ou de caráter parcial. E graças demos a psicanálise, contradizendo o modelo cartesiano empregnado nas ciências médicas, pois ela não quer a eliminação do sintoma, mas a ele ser apresentada. Lacan vê no sintoma um significante do significado recalcado da consciência do sujeito, sendo assim, de acesso não possível de ocorrer por sua natureza peculiar. O sintoma, uma verdade que não tem irmandade gêmea com a significação em si mesma, deve ter sua manifestação permitida e, acolhida, como seta sinalizadora entre uma ação hic et nunc e outra que atua em reiterada contumásia.


O Diretor: numa relação simbiótica dramatúrgica entre o nomear textualmente e o atuar, encontra-se o homem, o ser, a extensão de si mesmo e do mundo, de seu mundo, de nosso mundo, de nós mesmos. É ele, que dispensa apresentações pois se apresente diante de sua obra viva, vivida e vivenciada e aplaudida. Com um texto que não nega o ontem, mas não deixa de persuadir a uma leitura sub specie aeternitatis.


A atriz: no ninho aquecido descansa o ovo fecundo da nova criatura e, da alma da artista, surge o deleite dos sentidos humanos, demasiado humanos alguns, como diria meu amado Niezsche. Sua presença è, sono, sei, siamo e siete. Ecco !!! A cortina não se abre, mas a artista já está lá, atuando no erro não errado, descortinando a verdade de quem com ela comunga o momento. É plena, é o próprio sintoma pulsante e pulsionante da obra.


O ator: lá vem ele, ou será que ele já foi? não percebe-se a ida diante da presença que insiste de ser mesmo depois de ter sido. Atua atuando e não é atoa que atordoa os atordoados sedentos do mais querer ver e se aturdir, O bis aqui não se faz necessário, pois o ator já se foi mas não se despediu das mentes inquietas do público. Bravo !!!


O músico: manejando com presteza impar sua caixa de ressonância de forma arredondada, que assemelha-se a uma gota de orvalho, mas às vezes à uma lágrima, seja ela desencadeada por felicidade ou por tristeza, mas enfim, a certa altura do espetáculo, onde a necessidade fisiológica da fome me acomete, lembrava-me ela uma pera viçosa. As vozes do espetáculo não se originaram apenas das cordas vocais dos seus atores, mas também e intensamente do alaúde que não queria deixar de se manifestar e é também por ele que vimos e sentimos os sintomas do eu e do tu e do nós.


A peça: pede-se permissão para iniciar sem início, numa iniciação que já havia iniciado sem permissão e todos se preenchem de comoção. Enfim estamos conscientemente no começo do já começado e, aliviados não erramos com o suposto erro do outro que não errou, mas provocou empatia em todos e, em alguns, distanciamento, noutros agonia e ainda em outros vilipêndio até a compreensão. Quando avisei que Freud estaria presente no evento muitos chalacearam minha pessoa, mas confirmaram que eu falara a verdade, pois a presença de Sigismund Schlomo Freud pode ser sentida pelos sentidos mais dispersos durante o espetáculo, em cada linha, dita e não-dita, em casa gesto e movimento atuado e esquecido. Alguns riram durante algumas partes, do espetáculo? não o sei, mas quiçá do reflexo da própria imagem projetada no espelho chamado encenação teatral. Sim, estávamos numa overdose de sim e não presentes naquele palco, nos movimentos dos artistas e nos sintomas que não queríamos que fossem tão nossos e tão vivos como ali presentes se apresentaram ser. Algum momento, feito túnel do tempo, viemos e nos colocar em 1909 e diante de Freud ao tratar da neurose obsessivo-compulsiva à luz da teoria psico-sexual do desenvolvimento humano. O "Homem dos Ratos" toma espaço e lugar... ratte ratte ratte... e o público graceja e ao mesmo tempo compreende. Permitam-me não me prolongar em pormenores textuais, pois esta peça é digna de ser vista e revista e vista ainda novamente... não desejo ir além do que me é permitido, pois não poderia anuir ser capaz de nomear cada momento, pois o momento é o daquele momento, e não será o mesmo ao assistirem à peça, pois cada um carrega em si as lamparinas da sua identidade manifesta e que irá prover o encontro e desencontro pessoal diante do visto e do que não desejará vir a ver. Assista ao espetáculo e ouse compreendê-lo, ou aos próprios sintomas meus e teus.


Pós cena: se já não bastasse as glórias dramatúrgicas apresentadas, após, o deleite foi com o que a psicanálise de debruça e se faz mestre: a fala. É hora do público falar e falar o já falado mas não compreendido ou o que é querido de se ouvir de novo. E o verbo grita de todos os lados da platéia, a qual questiona mas responde suas próprias questões, pois ousa se ouvir mais uma vez. A troca é recíproca, onde o distante e o perto se impõem como sinônimos possíveis. Onde o profissional e o leigo comungam suas questões, algumas ainda não elaboradas, mas sedentas de virem a ser tão humanas quanto foram desde a mais tenra idade de cada qual. A cortina do palco já havia se fechado, mas o espetáculo continuou... após, o músicos, a atriz, os atores e o diretor já não estão mais lá, e nem nós, mas as cenas insistem em permanecer em nossas mentes atuando sem cessar. Nem precisou, antes de iniciar ao espetáculo, de pedir para que "quebrassem às pernas", pois o espetáculo teve a assinatura do sucesso, pleno de gozo. PARABÉNS !!!



TEMA: VARIAÇÕES FREUDIANAS 1 : O SINTOMA

Cia Inconsciente em Cena (Rio de Janeiro/RJ)
Texto e Direção: Antonio Quinet
Musica: José Eduardo Costa Silva
Encenação: Regina Miranda begin_of_the_skype_highlighting end_of_the_skype_highlighting e Antonio Quinet
Elenco: Aline DeLuna e Ilya São Paulo
Luz: Luis Paulo Neném
Cenário: Aurora dos Campos
Figurino: Luiza Marcier
Produção Rio: André Romam
Produção Joinville: Luciano
Realização: Atos e Divâs Produções

Lçto Nacional: 16 de outubro, às 20h30
Local: Teatro Juarez Machado (Joinville/SC).


Carlos Alberto HANG
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ORKUT Carlos Alberto Hang (http://www.orkut.com.br/Main#Profile?rl=mp&uid=12179450314487666558)
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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

XXV Panorama da Música Brasileira Atual


UM POUCO SOBRE O XXV PANORAMA DA MÚSICA BRASILEIRA ATUAL
Por José Eduardo Costa Silva

XXV Panorama da Música Brasileira Atual
Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Salão Leopoldo Miguez – 18:30 de 23/10/2010
Concerto do GNU – Grupo Novo da UNIRIO
Coordenação: Marcos Vieira Lucas.
GNU – Grupo Novo da UNIRIO:
Vicente Alexim – Clarinetas
Maria Carolina Cavalcanti – Flautas
Pablo Panaro e Antonio Ziviani – Pianos
Ayran Nicodemo – Violino
Diana Maron – Soprano
Gabriel Lucena – Violino
Marcos Lucas – Direção Musical e Regência.


Refiro-me especificamente ao concerto do GNU – Grupo Novo da UNIRIO. Naquele quente final de tarde, alguma coisa me lembrava os Concertos do Arrigo Barnabé, lá dos finais da década de 80. Talvez o recorte incisivo que os músicos davam ao fraseado das músicas que tocavam, como se quisessem romper com o movimento do som, que insistia em circular no teto da Sala Leopoldo Miguez. Talvez a riqueza dos contrastes de dinâmica. Talvez ainda a linguagem preponderante da maioria das músicas que constituíam o concerto – uma linguagem modal insinuante, retórica, que, em alguns casos, beirava o atonalismo. Bem, falamos aqui de um panorama, de uma impressão geral. Nesse sentido, vale a comparação entre o que acontece hoje na música e nas artes plásticas: o retro virou tema de um presente que cada vez mais mostra a sua cara. Um presente que retira o futuro do passado, sem necessariamente citá-lo.

Na música Peba n.1 de Paulo Rios Filho uma inusitada combinação de referências temáticas, onde o contraponto weberniano instaurou uma espécie de moldura, no interior da qual o conhecido tema de Você não vale nada foi convertido em recurso de expressão. A propósito, a utilização de um sistema musical dentro de outro parece que está consolidada como um recurso de expressão da música desta nova geração de compositores brasileiros. Trata-se mesmo de um amadurecimento, de um domínio de linguagem, que remete às primeiras experiências do Nacionalismo Musical, que buscavam promover o diálogo entre o que se convencionou chamar de erudito e popular, universal e local. Isto pôde ser ouvido também no Antissalmo por um Desherói de Danilo Guanais. Esta música, tal como seu título sugere, instaurou um clima épico às avessas, através de sua estrutura dialógica, em que se alternaram lirismo e austeridade. A voz de Diana Maron mostrou isso muito bem, transitando com facilidade entre o arioso e o estilo recitativo.

Ciclo de Sérgio Roberto de Oliveira pareceu radicalizar a tendência do diálogo entre referências que havíamos percebido no início do concerto. O estilo inconfundível da música de Piazzola eclodiu em Ciclo como um cantochão – uma espécie de pedal que, ao prolongar-se em nossa imaginação, dava suporte a um belíssimo e emocionante dueto de clarineta (Vicente Alexim) e flauta (Maria Carolina Cavalcanti). Um dueto cujo contraponto evocava a caça e o ricercar renascentistas, fazendo emergir no presente seu enraizamento no futuro do passado. Já havíamos percebido essa capacidade de essencializar o passado em outras composições do Sérgio Roberto de Oliveira. Essa capacidade confirma-se cada vez mais como um traço estilístico deste compositor.

O Carnaval do Marcos Lucas é veneziano. Sua música trouxe à superfície a dor da música da poesia do Manoel Bandeira. Subversão pura, a essência do Carnaval. Uma obra consistente, onde a não-linguagem da música parece falar mais do que a linguagem da palavra, e a poesia da palavra parece tornar a música mais música. A mesma linha é perseguida pelos Cinco Poemas Miniatura de Alexandre Espinheira. Aqui uma vez mais a alternância entre arioso e recitativo revela a suficiência técnica do canto de Diana Maron.

Como em outras exposições da música do Prelúdio 21, a música de Neder Nassaro surge como a mais corporal de todas. Nada, Ponto, Nó é puro inconsciente em cena. Gestos obsessivos fazem com que o violão de Gabriel Lucena, o violoncelo de Glenda Valéria e a clarineta de Vicente Alexim compareçam com todo seu potencial retórico. Uma retórica onde o falar é o puro gesto da emergência de um som recôndito. Por fim as Elucubrações Inkz Op. 27 de Guilherme Bertissolo. Talvez colocada intencionalmente no fim do concerto – uma espécie de síntese das tendências que pudemos imediatamente reconhecer nesse panorama fenomenológico.

terça-feira, 16 de março de 2010

A PROPÓSITO DO CRIME DE ÉDIPO

Breve apreciação sobre as obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig (Op.1)- música de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.

por José Eduardo Costa Silva

(Estes textos nasceram de minha interlocução com a Prof. Dra. Laura Rònai)

Gravações de referência:
Gretchen am Spinnrade: Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano)
Erlkönig (Op.1): Jessye Norman (voz) e Philip Mol (piano)


Detemo-nos no fato corrente que deu notoriedade ao mito: Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe, com quem teve filhos. Não obstante, é sabido que tais atos foram involuntários: assim que teve do oráculo a revelação de seu destino, Édipo afastou-se de seus pais adotivos, os quais pensava serem legítimos. Mas a peripécia do destino o levou ao encontro de seus pais verdadeiros e o desfecho trágico cumpriu-se. Édipo furou os olhos e exilou-se.

Afinal, por que os deuses foram tão impiedosos com Édipo? É justo que alguém seja punido por ações que cometeu involuntariamente? Essas questões são objetos de inúmeras especulações. Apresentamos aqui mais uma, que parece coadunar-se com um discurso que está implícito nas obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.
***

A nosso ver, a prática do incesto e do parricídio não é algo de todo estranho aos deuses gregos. Esses colecionaram ações que hoje escandalizariam qualquer cidadão cristão. Então não seria o fato de matar o pai e casar-se com a mãe que suscitaria tamanha ira, sobretudo em Apolo. O fato é que a desmedida de Édipo é de outra natureza; ele experimentou algo que é primazia dos deuses, que é: reunir em um momento as três dimensões da existência. Ao casar-se com Jocasta, Édipo desempenhou, em relação àquela mesma mulher, as condições de filho, amante e pai. Na condição de filho, ele viveu o passado de sua origem; na condição de amante, ele viveu o presente; na condição de pai dos filhos de Jocasta, ele projetou-se no futuro. Ou seja, Édipo subverteu a ordem do tempo dos mortais, para experimentar, como diz Aristóteles, a existência na ekstasis do tempo: um único instante que condensa o significado de toda existência. E esse instante, diga-se de passagem, é recheado de gozo, o mais profundo gozo, que permite a um homem sentir-se um deus.

Nada mais apropriado do que a música para enfatizar em um texto a referência à ekstasis do tempo. Ainda mais quando o músico em questão é Schubert e o escritor é Goethe. Sobre Gretchen am Spinnrade, Laura Rónai observa: a canção possui elementos que permitem-nos supor a existência de um desfecho trágico. Tem-se a imagem de uma moça ingênua e desavisada, objeto de desejo de um homem que fez pacto com o diabo. E a moça está simplesmente jogada à revelia do destino, que pode ser entrevisto na metáfora do tempo e da roca. O tempo passa inexorável e monótono, Como os fios na roca. Concomitante ao texto, no piano desenvolve-se um acompanhamento em ostinato, que reforça o significado da imagem da roca. E o movimento harmônico que conduz a melodia a um clímax é prenúncio de um acontecimento singular.

Esse acontecimento é a lembrança de um beijo. Ou melhor dizendo, a atualização de uma sensação. E ele está devidamente assinalado pela interrupção do fluxo do acompanhamento por um acorde de dominante. A imagem musical não poderia ser mais simples e nisso reside sua eficácia. A palavra beijo pára sobre o acorde; o tempo necessário para que tenhamos uma intuição simultânea do passado, do presente e do futuro. Isto é, de uma ekstasis do tempo. E o que revela-se nessa ekstasis? Que a moça, vítima em potencial do vilão demoníaco é portadora de desejo e gozo. E por isso, por portar desejo e gozo, ela possui a atividade do amor. E no exercício dessa atividade, como uma deusa, ela ousa unir o significado de sua existência em um único instante. Um orgasmo? Por que não? E naquele instante, a moça foi mais poderosa do que o mal que a ela estava destinado. A propósito, Platão apresenta interpretação semelhante sobre o amor no Banquete. Referindo-se à relação entre Alcebíades e Sócrates, ele conclui: o objeto de desejo, no caso Alcebíades, é mais ativo que o desejante.

A interpretação de Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano) é perfeita. Ela permite a eclosão de significados ambíguos. E isso dá-se porque os músicos souberam expressar afetos e caracteres. Por exemplo, a voz de Bárbara Bonney permite-nos supor a moça ingênua e a mulher que revela-se no desejo. E o piano efetivamente acompanha a expressão de tais afetos, através de um andamento sinuoso e ligeiramente lento, e uma articulação plenamente correspondente ao movimento harmônico.
***

A atmosfera trágica de Erlkönig pode ser imediatamente percebida pelo ouvinte. Pai e filho cavalgam a galope. O andamento da cavalgada é dado pela música, cujo acompanhamento é construído a partir de figuras de quiálteras, nervosas, sobretudo as que correspondem à mão esquerda do piano, que deixam entrever a premência do tempo. Evidentemente, está suposto que algo ruim irá acontecer. O garoto diz ao pai que está sendo seduzido pelo deus dos Elfos, ou seja, a morte. O garoto ouve a voz do deus, o pai não. O garoto caminha sozinho em direção a seu destino trágico. Os diálogos entre o deus, o garoto e o pai são devidamente assinalados pela voz de Jessye Norman. E desse diálogo revelam-se os afetos em questão: a voz do deus é sedutora, a do garoto transita entre o medo e o desejo; a do pai é a voz de um pai mesmo, que não pode supor o universo íntimo do garoto. E os afetos variam, segundo a região tonal correspondente.

Há ainda a voz de um narrador, que orienta a percepção linear da trama. Ou seja, a percepção que temos no início da peça irá se confirmar: o destino está inexoravelmente dado. Sabemos disso e podemos supor detalhes e metáforas. Por exemplo, é plausível supor que o garoto agoniza. Assim como é plausível admitir que o processo solitário da morte envolve dor e prazer. Um garoto seduzido por um deus pedófilo, cujo o discurso é promessa e ameaça ao mesmo tempo. Eis uma figura muito própria do imaginário homossexual masculino: esse misto de prazer e dor, prêmio e culpa. E a promessa cumpre-se. O garoto fica com o deus, ou seja, na esfera do deus. Mas para tal, morre no colo do pai. E sua morte é anunciada em um movimento cadencial perfeito. Outra vez, Schubert é simples e eficaz no tratamento musical do texto. A trajetória da cavalgada termina na resolução inexorável da tensão do movimento melódico e harmônico. A interpretação é livre: a morte é uma solução, que sintetiza a totalidade de uma existência. Destarte a morte totaliza uma ekstasis temporal. Podemos afirmar isso aqui porque desde os primeiros compassos intuímos a realização de um destino trágico. Mais uma vez, passado, presente e futuro em um só instante, justamente o que está assinalado naqueles compassos. E o desejo está presente nesse instante mágico, que confirmou-se no desenvolvimento da obra.

16/03/2010


sábado, 6 de março de 2010

A Música Emocionada de Sérgio Roberto de Oliveira Desafia Platão

(A propósito do Concerto de Lançamento do CD Sem Espera – Sala Vera Janacópulos – UNIRIO – RJ – 05/03/2010)

Por José Eduardo Costa Silva

Está no Crátilo a tese que ainda hoje influencia lingüistas e filósofos da linguagem: “os nomes são dados às coisas por convenção de linguagem”. Para o relativismo pós-moderno esta tese caiu do céu, afinal de que modo objetivamente comprovável um registro fonético pode corresponder a algo que ele nomeia ou faz referência simbólica?

Mas ao ouvir a música de Sérgio R. de Oliveira, ouso pensar que às vezes há uma exata e real adequação entre o nome e a coisa. Para tanto, duas condições devem ser satisfeitas: o nome há de ser proveniente do coração daquele que nomeia, e a coisa nomeada deve estar lá, justamente no coração. Assim, o coração do compositor é um lugar, onde a música e o nome da música habitam em perfeita vizinhança.

Seguindo o programa, naquela quente sala de concertos, leio: TRIO PARA FLAUTAS No 1 – I- Apresentação. Assim, o concerto inicia-se e de bom grado com uma apresentação! Estariam os músicos apresentando a música ou a música apresentando os músicos? Generosamente, Maria Carolina Cavalcanti, Rudi Garrido, Ana Paula Cruz, os músicos componentes do Trio Rónai, começam a tocar. Cada um à sua vez, com seus gestos próprios e sons personalizados, apresentam a música e deixam-se apresentar por ela. Os primeiros sons curtos e enérgicos das flautas estavam devidamente traduzidos no repertório gestual dos músicos; o concerto realmente começou quente, tão quente quanto a sala. A seguir, em contraste com os sons curtos, notas alongadas, tão alongadas quanto os corpos dos músicos que as acompanhavam. Prenunciava-se ali o que foi a característica geral do concerto: uma perfeita simbiose entre música, nome da música e músicos. E esta simbiose foi devidamente avalizada pelo produto decorrente: a emoção!

Após a apresentação, os outros dois movimentos do TRIO PARA FLAUTAS No 1, Canção e Fuga. Literalmente isso: canção e fuga – sem deixar dúvidas quanto ao esquema formal escolhido pelo compositor, e, sobretudo, para uma das características de seu estilo: o equilíbrio entre o que ainda é contemporâneo e o tradicional. Na música de Sérgio R. de Oliveira, a vagueza da melodia construída a partir de uma harmonia liberada, isto é, rica pelo uso livre das dissonâncias, está devidamente sustentada pela relação segura com os recursos contrapontísticos do dito repertório canônico. E mais uma vez a música não desmentiu o título: ouvi uma canção e uma fuga, bem modernas, diga-se de passagem.

Em linhas gerais, o DUO PARA FLAUTAS trouxe características da obra anterior. Porém, nele pronunciaram mais duas características do estilo de Sérgio R. de Oliveira: a exploração completa do instrumento e o cheiro nacionalista, digo cheiro, não mera citação de estruturas rítmicas e melódicas do folclore nacional. Foi emocionante reconhecer-me nesse cheiro e, mais emocionante ainda, deixar-me assustar pelos batimentos dissonantes das notas agudas das flautas de Rudi e Ana Paula, que entreolhavam-se como se brincassem com aqueles batimentos.

A FANTASIA PARA FLAUTA SOLO foi anunciada por Sérgio R. de Oliveira. Com a voz embargada, ele chamou ao palco sua mestra (Doutora) Laura Rònai. A interpretação de Laura revelou algo da formação estilística de Sérgio: o apego à retoricidade da música, algo que os músicos habituados à música antiga sabem muito bem. Laura sorria para a partitura, demonstrando prazer ao empregar farto repertório de recursos de dinâmica e agógica. Mais uma vez, ritmos enérgicos eram seguidos e contrastados com trechos de puro lirismo, mais contrastes entre frases curtas e longas...impressionismo, barroco e nacionalismo ao mesmo tempo, resultado: emoção!

12 BAGATELAS, em minha opinião, constituíram o ápice do concerto. Nestas obras Sérgio R. de Oliveira revelou toda a sua capacidade de expressar com a música afetos e idéias abstratas. Não há relação objetiva entre palavra e coisa? Aqui tango é tango, valsa é valsa, acorde é acorde etc... E perda? Perda é um nó na garganta! Um nó trazido por um sopro profundo ao contrário, um suspiro de uma nota longa que parece ter alongado o corpo da Maria Carolina. Afinal, até o momento nunca tinha ouvido música expressar uma conjunção. Certamente não há relação entre palavra e coisa, posto que fonemas agrupados não compartilham do mesmo universo físico das coisas. Mas a música de Sérgio ensina que para determinadas coisas cabe apenas uma palavra correspondente, apenas uma. E uma tal certeza é também fonte de emoção.

TRIO PARA FLAUTAS 2: Anacruzes para Ana Cruz, Coral da Carol, Rondó de Rudi – uma música para cada músico, uma só música para todos os músicos – a música generosa de um compositor que transforma um grupo de música câmera em um grupo de solistas, todos tocando junto e na ordem.

Bis! SEM ESPERA – obra que dá nome ao título do Concerto e do CD. Sem espera, o compositor Sérgio R. de Oliveira parece não preocupar-se com o tempo. É o que deixa antever sua música madura, equilibrada, consciente e inconsciente, sobretudo, emocionante! A música de Sérgio R. de Oliveira contradiz aquela opinião reacionária de que música contemporânea não emociona. Porém ela é facilmente absolvida em um plano intelectivo, o que permite-nos concordar com seus títulos e duvidar da célebre tese de Platão.

Rio de Janeiro, 06 de Março de 2010