terça-feira, 16 de março de 2010

A PROPÓSITO DO CRIME DE ÉDIPO

Breve apreciação sobre as obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig (Op.1)- música de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.

por José Eduardo Costa Silva

(Estes textos nasceram de minha interlocução com a Prof. Dra. Laura Rònai)

Gravações de referência:
Gretchen am Spinnrade: Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano)
Erlkönig (Op.1): Jessye Norman (voz) e Philip Mol (piano)


Detemo-nos no fato corrente que deu notoriedade ao mito: Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe, com quem teve filhos. Não obstante, é sabido que tais atos foram involuntários: assim que teve do oráculo a revelação de seu destino, Édipo afastou-se de seus pais adotivos, os quais pensava serem legítimos. Mas a peripécia do destino o levou ao encontro de seus pais verdadeiros e o desfecho trágico cumpriu-se. Édipo furou os olhos e exilou-se.

Afinal, por que os deuses foram tão impiedosos com Édipo? É justo que alguém seja punido por ações que cometeu involuntariamente? Essas questões são objetos de inúmeras especulações. Apresentamos aqui mais uma, que parece coadunar-se com um discurso que está implícito nas obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.
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A nosso ver, a prática do incesto e do parricídio não é algo de todo estranho aos deuses gregos. Esses colecionaram ações que hoje escandalizariam qualquer cidadão cristão. Então não seria o fato de matar o pai e casar-se com a mãe que suscitaria tamanha ira, sobretudo em Apolo. O fato é que a desmedida de Édipo é de outra natureza; ele experimentou algo que é primazia dos deuses, que é: reunir em um momento as três dimensões da existência. Ao casar-se com Jocasta, Édipo desempenhou, em relação àquela mesma mulher, as condições de filho, amante e pai. Na condição de filho, ele viveu o passado de sua origem; na condição de amante, ele viveu o presente; na condição de pai dos filhos de Jocasta, ele projetou-se no futuro. Ou seja, Édipo subverteu a ordem do tempo dos mortais, para experimentar, como diz Aristóteles, a existência na ekstasis do tempo: um único instante que condensa o significado de toda existência. E esse instante, diga-se de passagem, é recheado de gozo, o mais profundo gozo, que permite a um homem sentir-se um deus.

Nada mais apropriado do que a música para enfatizar em um texto a referência à ekstasis do tempo. Ainda mais quando o músico em questão é Schubert e o escritor é Goethe. Sobre Gretchen am Spinnrade, Laura Rónai observa: a canção possui elementos que permitem-nos supor a existência de um desfecho trágico. Tem-se a imagem de uma moça ingênua e desavisada, objeto de desejo de um homem que fez pacto com o diabo. E a moça está simplesmente jogada à revelia do destino, que pode ser entrevisto na metáfora do tempo e da roca. O tempo passa inexorável e monótono, Como os fios na roca. Concomitante ao texto, no piano desenvolve-se um acompanhamento em ostinato, que reforça o significado da imagem da roca. E o movimento harmônico que conduz a melodia a um clímax é prenúncio de um acontecimento singular.

Esse acontecimento é a lembrança de um beijo. Ou melhor dizendo, a atualização de uma sensação. E ele está devidamente assinalado pela interrupção do fluxo do acompanhamento por um acorde de dominante. A imagem musical não poderia ser mais simples e nisso reside sua eficácia. A palavra beijo pára sobre o acorde; o tempo necessário para que tenhamos uma intuição simultânea do passado, do presente e do futuro. Isto é, de uma ekstasis do tempo. E o que revela-se nessa ekstasis? Que a moça, vítima em potencial do vilão demoníaco é portadora de desejo e gozo. E por isso, por portar desejo e gozo, ela possui a atividade do amor. E no exercício dessa atividade, como uma deusa, ela ousa unir o significado de sua existência em um único instante. Um orgasmo? Por que não? E naquele instante, a moça foi mais poderosa do que o mal que a ela estava destinado. A propósito, Platão apresenta interpretação semelhante sobre o amor no Banquete. Referindo-se à relação entre Alcebíades e Sócrates, ele conclui: o objeto de desejo, no caso Alcebíades, é mais ativo que o desejante.

A interpretação de Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano) é perfeita. Ela permite a eclosão de significados ambíguos. E isso dá-se porque os músicos souberam expressar afetos e caracteres. Por exemplo, a voz de Bárbara Bonney permite-nos supor a moça ingênua e a mulher que revela-se no desejo. E o piano efetivamente acompanha a expressão de tais afetos, através de um andamento sinuoso e ligeiramente lento, e uma articulação plenamente correspondente ao movimento harmônico.
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A atmosfera trágica de Erlkönig pode ser imediatamente percebida pelo ouvinte. Pai e filho cavalgam a galope. O andamento da cavalgada é dado pela música, cujo acompanhamento é construído a partir de figuras de quiálteras, nervosas, sobretudo as que correspondem à mão esquerda do piano, que deixam entrever a premência do tempo. Evidentemente, está suposto que algo ruim irá acontecer. O garoto diz ao pai que está sendo seduzido pelo deus dos Elfos, ou seja, a morte. O garoto ouve a voz do deus, o pai não. O garoto caminha sozinho em direção a seu destino trágico. Os diálogos entre o deus, o garoto e o pai são devidamente assinalados pela voz de Jessye Norman. E desse diálogo revelam-se os afetos em questão: a voz do deus é sedutora, a do garoto transita entre o medo e o desejo; a do pai é a voz de um pai mesmo, que não pode supor o universo íntimo do garoto. E os afetos variam, segundo a região tonal correspondente.

Há ainda a voz de um narrador, que orienta a percepção linear da trama. Ou seja, a percepção que temos no início da peça irá se confirmar: o destino está inexoravelmente dado. Sabemos disso e podemos supor detalhes e metáforas. Por exemplo, é plausível supor que o garoto agoniza. Assim como é plausível admitir que o processo solitário da morte envolve dor e prazer. Um garoto seduzido por um deus pedófilo, cujo o discurso é promessa e ameaça ao mesmo tempo. Eis uma figura muito própria do imaginário homossexual masculino: esse misto de prazer e dor, prêmio e culpa. E a promessa cumpre-se. O garoto fica com o deus, ou seja, na esfera do deus. Mas para tal, morre no colo do pai. E sua morte é anunciada em um movimento cadencial perfeito. Outra vez, Schubert é simples e eficaz no tratamento musical do texto. A trajetória da cavalgada termina na resolução inexorável da tensão do movimento melódico e harmônico. A interpretação é livre: a morte é uma solução, que sintetiza a totalidade de uma existência. Destarte a morte totaliza uma ekstasis temporal. Podemos afirmar isso aqui porque desde os primeiros compassos intuímos a realização de um destino trágico. Mais uma vez, passado, presente e futuro em um só instante, justamente o que está assinalado naqueles compassos. E o desejo está presente nesse instante mágico, que confirmou-se no desenvolvimento da obra.

16/03/2010


sábado, 6 de março de 2010

A Música Emocionada de Sérgio Roberto de Oliveira Desafia Platão

(A propósito do Concerto de Lançamento do CD Sem Espera – Sala Vera Janacópulos – UNIRIO – RJ – 05/03/2010)

Por José Eduardo Costa Silva

Está no Crátilo a tese que ainda hoje influencia lingüistas e filósofos da linguagem: “os nomes são dados às coisas por convenção de linguagem”. Para o relativismo pós-moderno esta tese caiu do céu, afinal de que modo objetivamente comprovável um registro fonético pode corresponder a algo que ele nomeia ou faz referência simbólica?

Mas ao ouvir a música de Sérgio R. de Oliveira, ouso pensar que às vezes há uma exata e real adequação entre o nome e a coisa. Para tanto, duas condições devem ser satisfeitas: o nome há de ser proveniente do coração daquele que nomeia, e a coisa nomeada deve estar lá, justamente no coração. Assim, o coração do compositor é um lugar, onde a música e o nome da música habitam em perfeita vizinhança.

Seguindo o programa, naquela quente sala de concertos, leio: TRIO PARA FLAUTAS No 1 – I- Apresentação. Assim, o concerto inicia-se e de bom grado com uma apresentação! Estariam os músicos apresentando a música ou a música apresentando os músicos? Generosamente, Maria Carolina Cavalcanti, Rudi Garrido, Ana Paula Cruz, os músicos componentes do Trio Rónai, começam a tocar. Cada um à sua vez, com seus gestos próprios e sons personalizados, apresentam a música e deixam-se apresentar por ela. Os primeiros sons curtos e enérgicos das flautas estavam devidamente traduzidos no repertório gestual dos músicos; o concerto realmente começou quente, tão quente quanto a sala. A seguir, em contraste com os sons curtos, notas alongadas, tão alongadas quanto os corpos dos músicos que as acompanhavam. Prenunciava-se ali o que foi a característica geral do concerto: uma perfeita simbiose entre música, nome da música e músicos. E esta simbiose foi devidamente avalizada pelo produto decorrente: a emoção!

Após a apresentação, os outros dois movimentos do TRIO PARA FLAUTAS No 1, Canção e Fuga. Literalmente isso: canção e fuga – sem deixar dúvidas quanto ao esquema formal escolhido pelo compositor, e, sobretudo, para uma das características de seu estilo: o equilíbrio entre o que ainda é contemporâneo e o tradicional. Na música de Sérgio R. de Oliveira, a vagueza da melodia construída a partir de uma harmonia liberada, isto é, rica pelo uso livre das dissonâncias, está devidamente sustentada pela relação segura com os recursos contrapontísticos do dito repertório canônico. E mais uma vez a música não desmentiu o título: ouvi uma canção e uma fuga, bem modernas, diga-se de passagem.

Em linhas gerais, o DUO PARA FLAUTAS trouxe características da obra anterior. Porém, nele pronunciaram mais duas características do estilo de Sérgio R. de Oliveira: a exploração completa do instrumento e o cheiro nacionalista, digo cheiro, não mera citação de estruturas rítmicas e melódicas do folclore nacional. Foi emocionante reconhecer-me nesse cheiro e, mais emocionante ainda, deixar-me assustar pelos batimentos dissonantes das notas agudas das flautas de Rudi e Ana Paula, que entreolhavam-se como se brincassem com aqueles batimentos.

A FANTASIA PARA FLAUTA SOLO foi anunciada por Sérgio R. de Oliveira. Com a voz embargada, ele chamou ao palco sua mestra (Doutora) Laura Rònai. A interpretação de Laura revelou algo da formação estilística de Sérgio: o apego à retoricidade da música, algo que os músicos habituados à música antiga sabem muito bem. Laura sorria para a partitura, demonstrando prazer ao empregar farto repertório de recursos de dinâmica e agógica. Mais uma vez, ritmos enérgicos eram seguidos e contrastados com trechos de puro lirismo, mais contrastes entre frases curtas e longas...impressionismo, barroco e nacionalismo ao mesmo tempo, resultado: emoção!

12 BAGATELAS, em minha opinião, constituíram o ápice do concerto. Nestas obras Sérgio R. de Oliveira revelou toda a sua capacidade de expressar com a música afetos e idéias abstratas. Não há relação objetiva entre palavra e coisa? Aqui tango é tango, valsa é valsa, acorde é acorde etc... E perda? Perda é um nó na garganta! Um nó trazido por um sopro profundo ao contrário, um suspiro de uma nota longa que parece ter alongado o corpo da Maria Carolina. Afinal, até o momento nunca tinha ouvido música expressar uma conjunção. Certamente não há relação entre palavra e coisa, posto que fonemas agrupados não compartilham do mesmo universo físico das coisas. Mas a música de Sérgio ensina que para determinadas coisas cabe apenas uma palavra correspondente, apenas uma. E uma tal certeza é também fonte de emoção.

TRIO PARA FLAUTAS 2: Anacruzes para Ana Cruz, Coral da Carol, Rondó de Rudi – uma música para cada músico, uma só música para todos os músicos – a música generosa de um compositor que transforma um grupo de música câmera em um grupo de solistas, todos tocando junto e na ordem.

Bis! SEM ESPERA – obra que dá nome ao título do Concerto e do CD. Sem espera, o compositor Sérgio R. de Oliveira parece não preocupar-se com o tempo. É o que deixa antever sua música madura, equilibrada, consciente e inconsciente, sobretudo, emocionante! A música de Sérgio R. de Oliveira contradiz aquela opinião reacionária de que música contemporânea não emociona. Porém ela é facilmente absolvida em um plano intelectivo, o que permite-nos concordar com seus títulos e duvidar da célebre tese de Platão.

Rio de Janeiro, 06 de Março de 2010