Breve apreciação sobre as obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig (Op.1)- música de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.
por José Eduardo Costa Silva
(Estes textos nasceram de minha interlocução com a Prof. Dra. Laura Rònai)
Gravações de referência:
Gretchen am Spinnrade: Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano)
Erlkönig (Op.1): Jessye Norman (voz) e Philip Mol (piano)
Detemo-nos no fato corrente que deu notoriedade ao mito: Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe, com quem teve filhos. Não obstante, é sabido que tais atos foram involuntários: assim que teve do oráculo a revelação de seu destino, Édipo afastou-se de seus pais adotivos, os quais pensava serem legítimos. Mas a peripécia do destino o levou ao encontro de seus pais verdadeiros e o desfecho trágico cumpriu-se. Édipo furou os olhos e exilou-se.
por José Eduardo Costa Silva
(Estes textos nasceram de minha interlocução com a Prof. Dra. Laura Rònai)
Gravações de referência:
Gretchen am Spinnrade: Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano)
Erlkönig (Op.1): Jessye Norman (voz) e Philip Mol (piano)
Detemo-nos no fato corrente que deu notoriedade ao mito: Édipo matou o pai e casou-se com sua mãe, com quem teve filhos. Não obstante, é sabido que tais atos foram involuntários: assim que teve do oráculo a revelação de seu destino, Édipo afastou-se de seus pais adotivos, os quais pensava serem legítimos. Mas a peripécia do destino o levou ao encontro de seus pais verdadeiros e o desfecho trágico cumpriu-se. Édipo furou os olhos e exilou-se.
Afinal, por que os deuses foram tão impiedosos com Édipo? É justo que alguém seja punido por ações que cometeu involuntariamente? Essas questões são objetos de inúmeras especulações. Apresentamos aqui mais uma, que parece coadunar-se com um discurso que está implícito nas obras Gretchen am Spinnrade e Erlkönig de Franz Schubert sobre texto de J. W. Von Goethe.
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A nosso ver, a prática do incesto e do parricídio não é algo de todo estranho aos deuses gregos. Esses colecionaram ações que hoje escandalizariam qualquer cidadão cristão. Então não seria o fato de matar o pai e casar-se com a mãe que suscitaria tamanha ira, sobretudo em Apolo. O fato é que a desmedida de Édipo é de outra natureza; ele experimentou algo que é primazia dos deuses, que é: reunir em um momento as três dimensões da existência. Ao casar-se com Jocasta, Édipo desempenhou, em relação àquela mesma mulher, as condições de filho, amante e pai. Na condição de filho, ele viveu o passado de sua origem; na condição de amante, ele viveu o presente; na condição de pai dos filhos de Jocasta, ele projetou-se no futuro. Ou seja, Édipo subverteu a ordem do tempo dos mortais, para experimentar, como diz Aristóteles, a existência na ekstasis do tempo: um único instante que condensa o significado de toda existência. E esse instante, diga-se de passagem, é recheado de gozo, o mais profundo gozo, que permite a um homem sentir-se um deus.
Nada mais apropriado do que a música para enfatizar em um texto a referência à ekstasis do tempo. Ainda mais quando o músico em questão é Schubert e o escritor é Goethe. Sobre Gretchen am Spinnrade, Laura Rónai observa: a canção possui elementos que permitem-nos supor a existência de um desfecho trágico. Tem-se a imagem de uma moça ingênua e desavisada, objeto de desejo de um homem que fez pacto com o diabo. E a moça está simplesmente jogada à revelia do destino, que pode ser entrevisto na metáfora do tempo e da roca. O tempo passa inexorável e monótono, Como os fios na roca. Concomitante ao texto, no piano desenvolve-se um acompanhamento em ostinato, que reforça o significado da imagem da roca. E o movimento harmônico que conduz a melodia a um clímax é prenúncio de um acontecimento singular.
Esse acontecimento é a lembrança de um beijo. Ou melhor dizendo, a atualização de uma sensação. E ele está devidamente assinalado pela interrupção do fluxo do acompanhamento por um acorde de dominante. A imagem musical não poderia ser mais simples e nisso reside sua eficácia. A palavra beijo pára sobre o acorde; o tempo necessário para que tenhamos uma intuição simultânea do passado, do presente e do futuro. Isto é, de uma ekstasis do tempo. E o que revela-se nessa ekstasis? Que a moça, vítima em potencial do vilão demoníaco é portadora de desejo e gozo. E por isso, por portar desejo e gozo, ela possui a atividade do amor. E no exercício dessa atividade, como uma deusa, ela ousa unir o significado de sua existência em um único instante. Um orgasmo? Por que não? E naquele instante, a moça foi mais poderosa do que o mal que a ela estava destinado. A propósito, Platão apresenta interpretação semelhante sobre o amor no Banquete. Referindo-se à relação entre Alcebíades e Sócrates, ele conclui: o objeto de desejo, no caso Alcebíades, é mais ativo que o desejante.
A interpretação de Bárbara Bonney (voz) e Geoffrey Parsons (piano) é perfeita. Ela permite a eclosão de significados ambíguos. E isso dá-se porque os músicos souberam expressar afetos e caracteres. Por exemplo, a voz de Bárbara Bonney permite-nos supor a moça ingênua e a mulher que revela-se no desejo. E o piano efetivamente acompanha a expressão de tais afetos, através de um andamento sinuoso e ligeiramente lento, e uma articulação plenamente correspondente ao movimento harmônico.
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A atmosfera trágica de Erlkönig pode ser imediatamente percebida pelo ouvinte. Pai e filho cavalgam a galope. O andamento da cavalgada é dado pela música, cujo acompanhamento é construído a partir de figuras de quiálteras, nervosas, sobretudo as que correspondem à mão esquerda do piano, que deixam entrever a premência do tempo. Evidentemente, está suposto que algo ruim irá acontecer. O garoto diz ao pai que está sendo seduzido pelo deus dos Elfos, ou seja, a morte. O garoto ouve a voz do deus, o pai não. O garoto caminha sozinho em direção a seu destino trágico. Os diálogos entre o deus, o garoto e o pai são devidamente assinalados pela voz de Jessye Norman. E desse diálogo revelam-se os afetos em questão: a voz do deus é sedutora, a do garoto transita entre o medo e o desejo; a do pai é a voz de um pai mesmo, que não pode supor o universo íntimo do garoto. E os afetos variam, segundo a região tonal correspondente.
Há ainda a voz de um narrador, que orienta a percepção linear da trama. Ou seja, a percepção que temos no início da peça irá se confirmar: o destino está inexoravelmente dado. Sabemos disso e podemos supor detalhes e metáforas. Por exemplo, é plausível supor que o garoto agoniza. Assim como é plausível admitir que o processo solitário da morte envolve dor e prazer. Um garoto seduzido por um deus pedófilo, cujo o discurso é promessa e ameaça ao mesmo tempo. Eis uma figura muito própria do imaginário homossexual masculino: esse misto de prazer e dor, prêmio e culpa. E a promessa cumpre-se. O garoto fica com o deus, ou seja, na esfera do deus. Mas para tal, morre no colo do pai. E sua morte é anunciada em um movimento cadencial perfeito. Outra vez, Schubert é simples e eficaz no tratamento musical do texto. A trajetória da cavalgada termina na resolução inexorável da tensão do movimento melódico e harmônico. A interpretação é livre: a morte é uma solução, que sintetiza a totalidade de uma existência. Destarte a morte totaliza uma ekstasis temporal. Podemos afirmar isso aqui porque desde os primeiros compassos intuímos a realização de um destino trágico. Mais uma vez, passado, presente e futuro em um só instante, justamente o que está assinalado naqueles compassos. E o desejo está presente nesse instante mágico, que confirmou-se no desenvolvimento da obra.
16/03/2010